Quilombolas da comunidade Vista Alegre, em Alcântara, no Maranhão, acusam a Polícia Militar de abuso de força, de intimidação e de atacar moradores durante um despejo, ocorrido no dia 29 de março, sob comando do CLA (Centro de Lançamento de Alcântara), da Aeronáutica.
A reintegração de posse buscava desocupar um imóvel que teria sido construído e ocupado de forma ilegal, de acordo com o CLA e a AGU (Advocacia-Geral da União).
A propriedade é de Moisés de Costa Santos, morador do Vista Alegre, e fica numa área de responsabilidade da União, onde o quilombo está localizado. A comunidade é certificada pela Fundação Cultural Palmares, mas ainda não tem título de propriedade.
Moradores do quilombo enviaram à Folha vídeos e fotos que, de acordo com eles, foram gravados durante a reintegração. As cenas mostram gritos, correria, barricadas de fogo e o uso do que parece ser gás lacrimogêneo.
Ainda segundo moradores, crianças e idosos foram atingidos por bombas e balas de borracha. Para registrar as agressões, os quilombolas fizeram exames de corpo de delito e tiraram fotos dos machucados.
“Minha neta [uma criança] foi atingida com uma bala de borracha na testa. Eu fui com uma na perna e outra na virilha. Meu genro, na perna. Meu irmão, no braço. [Houve ainda o ferimento de] outras pessoas”, diz Orlando Rodrigues Costa, liderança de Vista Alegre. “Queremos justiça.”
A Folha questionou o CLA sobre o suposto uso de gás lacrimogêneo e bombas de borracha, mas não teve resposta. Em nota, a Aeronáutica apenas afirma que fez a reintegração onde havia “o empreendimento denominado ‘Pousada Vista Del Mar’, próximo ao povoado de Vista Alegre”.
O órgão diz ainda que “o CLA ressalta que desconhece determinação para retirada de membros da comunidade Vista Alegre da área, assim como não possui competência para efetuar o remanejamento de habitantes. Assim, não haverá qualquer tipo de interferência na referida comunidade”.
Santos é o fundador do restaurante Pousada Vista Del Mar, mas diz que deixou de realizar atividades comerciais desde o ano passado, quando ele teria desistido do empreendimento após sucessivas ameaças de reintegração.
Segundo ele, a propriedade vinha sendo usada somente como sua moradia e para cultos religiosos da comunidade.
Em nota, a AGU afirma que “foram realizadas diversas tentativas conciliatórias para desocupação do imóvel, mas elas foram infrutíferas”.
A ação teria sido necessária para “cessar a ocupação indevida realizada dentro de uma área de 12.467 m2 de propriedade da União”.
A AGU diz ainda que “a reintegração não abrange mais nenhuma outra ocupação além da área utilizada pelo empreendimento comercial, uma construção recente sem qualquer licença ambiental”.
Segundo Santos, o argumento é apenas uma cortina de fumaça para desapropriarem o território da comunidade. “No começo [da construção do restaurante], diziam que a gente desmatou a área. Mas havíamos replantado todos os módulos, que, aliás, eles cortaram.”
Ele diz também que o CLA ignora sua relação com o quilombo. “Falam como se eu fosse um empresário de fora que explorava uma área do CLA”, afirma. “Tentam me desvincular da comunidade.”
No Brasil, a identidade quilombola ocorre somente por autodeclaração e anuência coletiva da comunidade.
A Folha ouviu outros moradores do Vista Alegre que confirmam a relação de Santos com o quilombo. O jornal também teve acesso a um documento da associação da comunidade que aponta o vínculo.
Segundo Santos, sua vizinha também teria tido a casa destruída durante a reintegração. Ele diz que, desde então, está hospedado na casa de sua tia.
“Estamos aqui há quatro gerações. Meu bisavô está enterrado no cemitério da comunidade”, afirma. “Eles querem tomar nossa história, nossa ancestralidade, nossa vida. É triste. Acham que o quilombola tem que ser miserável.”
O MIR (Ministério da Igualdade Racial) e o MDHC (Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania), chefiados por Anielle Franco e Silvio Almeida, respectivamente, publicaram juntos uma nota de repúdio ao “uso excessivo da força e às violações de direitos” durante reintegração.
“A este respeito, salientamos que o MIR e o MDHC já determinaram que sejam tomadas as medidas necessárias para acolhimento, identificação do número de pessoas afetadas e futuras reparações por meio da Secretaria de Políticas para Quilombolas, Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, Povos de Terreiros e Ciganos, da pasta da Igualdade Racial, e da Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, dos Direitos Humanos e da Cidadania”, afirma o texto.
A nota diz ainda que as pastas estão analisando o caso em diálogo com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, o Ministério da Defesa, o Ministério Público Federal, o Ministério Público do Estado do Maranhão, a Defensoria Pública da União, a Defensora Nacional de Direitos Humanos, a Defensoria Pública do Maranhão e a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Maranhão.
“Nos próximos dias, haverá uma reunião do Governo Federal para o compartilhamento de soluções sobre situações que envolvem as comunidades quilombolas de Alcântara”, diz a nota. (Da Folha de SP)
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