Aquele que não se manifesta contra uma atitude concorda com ela. Desde o século 13, esse é o significado da máxima popular “quem cala, consente”. Presente em várias línguas, como o inglês (silence gives consent) e o espanhol (quien calla otorga), a expressão foi cunhada por Bonifácio VIII, papa entre 1294 e 1303, em uma de suas decretais.
A expressão pode ser usada para definir o estranho silêncio do prefeito de São Luís, Eduardo Braide (PSD) em relação às denúncias de irregularidade na Secretaria Municipal da Criança e Assistência Social (Semcas).
A falta de posicionamento de Braide lembra a atuação de um advogado que orienta um determinado cliente que está sendo acusado por algo a permanecer em silêncio para evitar produzir provas contra si. O problema, entanto, é que o silêncio pode, em muitas das vezes representar má-fé, podendo inclusive acarretar algo pior, através da omissão dolosa.
É por isso que a expressão tal como prega o dito popular que intitula o presente texto pode se encaixar ao prefeito ludovicense que, ao invés de tomar uma posição, optou por silenciar.
As máximas populares são lugares comuns reiterados no dia a dia e que formam, querendo ou não, o aparato cognitivo da população, dentre eles algumas denúncias que envolvem a gestão pública ou os metidos do processo penal. Não se pode desprezar ainda o peso da culpa judaico-cristã e do questionamento bíblico “por que calas, se és inocente?”.
Por mais que o acusado tenha o direito de permanecer em silêncio, não raro sublinha-se, no contexto da fundamentação das decisões judiciais, que o acusado não quis apresentar sua versão. Isso também é sintoma da ‘frustração de expectativas’, ou seja, o juiz, como ser-no-mundo, é alimentado pela ‘curiosidade’ e movido pelo ‘desejo’, portanto, o silêncio do acusado é um ‘tapa’ no conjunto de expectativas criadas pelo julgador.
Braide age exatamente assim ao ignorar as denúncias do co-vereador Jonathan Alves – do Coletivo Nós (PT) sobre suposta prática de nepotismo e possível favorecimento em processos licitatórios, não emitindo qualquer nota sobre o assunto.
O prefeito tem direito de permanecer calado, mas o exercício de seu silêncio é tomado como uma confissão silenciosa da culpa. A Constituição da República garante o direito ao silêncio (artigo 5º, inciso LXIII), na linha do devido processo legal substancial, pois, ninguém seria obrigado a produzir prova contra si mesmo. Mas o exercício do direito é mais complexo.
Compreendendo o processo como jogo de informação, a atitude do acusado em permanecer em silêncio ainda encontra forte resistência dos agentes processuais que muitas vezes entendem o exercício do direito como uma forma de desrespeito. Muitos magistrados e membros do Ministério Público tomam o exercício do direito como uma forma de depreciação com suas funções, uma forma “indolente” ou “inatural” de comportamento, quando não invocam, ainda, o não recepcionado artigo 186 do Código de Processo Penal conforme se infere:
“O juiz criminal não se pode permitir nenhuma ingenuidade no exercício de suas funções (…) O silêncio do réu não implica em confissão, mas é significativa a atitude de quem, preso e acusado injustamente de crime gravíssimo, prefere manter-se calado, pois a reação natural de qualquer pessoa inocente é proclamar veementemente a sua inocência, esteja onde estiver.” (TRF-4, Ap. Criminal 6.656, julgado em 12/11/2001).
Entre o dizer e o não dizer, aponta a linguista e professora universitária brasileira Eni Orlandi, existe um intrincando processo de atribuição de sentido, pelo qual as próprias palavras transpiram o sentido, como se do silêncio se deduzisse, imaginariamente, o sentido (que se quiser). O imaginário aqui preenche o sentido que não se deu a partir da tática silenciosa. Daí os riscos de não dizer. Não raro, se pôr em silêncio gera uma dimensão implícita do que se poderia dizer. Daí a importância de se estudar os efeitos do silêncio no processo penal. Eni Orlandi sustenta que “há um sentido no silêncio. O silêncio foi relegado a uma posição secundária, como excrescência, como o ‘resto’ da linguagem”.
Na opinião dos juristas Aury Lopes Jr e Alexandre Morais da Rosa, “o silêncio pode deslizar em diferentes sentidos para o sujeito e, especialmente no ambiente processual brasileiro, ficar em silêncio pode ser um risco a ser mensurado”. Braide pode até exercer esse direito, mas essa pode ser uma tarefa clandestina e arriscada, principalmente quando se está movido por verdades absolutas e autoritárias. O risco está posto. A análise deve ser feita, conforme seus personagens.
A dinâmica do caso é única, mas já produz ligações com outros gestores acusados e condenados como é o caso da ex-prefeita de Paço do Lumiar, Bia Venâncio, que também foi citada nas denúncias. O silêncio, todavia, pode ganhar sentidos inesperados, dado que os efeitos do silêncio são imprevisíveis. Afinal, quem cala, consente.
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